Já disse tantas vezes o que disse

Já disse tantas vezes o que disse
sem dizer o que agora não sei se vou dizer
É uma ilusão decerto supor que a palavra se levanta
e arde porque coincide com a substância real
Mas se a palavra não chega a ser uma evidência fértil
do mundo ela é a sede que inventa a sua água
e nós não sabemos se a água é verbal ou líquida substância

O desejo procura a oportunidade de um silêncioso enlace
com um corpo disperso mas de unidade vibrante
Esse corpo está no espaço em voluptuoso abandono
mas nós temos os músculos demasiado rígidos
e a língua não encontra as vogais vivas do veludo do sossego
Era esse corpo que outrora os homens partilhavam sem parti-lo
e de novo nasciam ao nível das virilhas e dos pulmões

Quando será o dia em que reconheceremos os rostos uns dos outros
como frutos fulvos com os seus sulcos de sombra e a sua melodia de nascente?
É esta a comunidade viva com que sempre sonhámos
esta a glória a única da identidade comum
em que os sonhos esvoaçavam com sombras felizes
porque estávamos perto do mar junto de grandes cântaros azuis
atulhados de seiva ou do pólen de grandes girassóis

Mas o paciente escriba acaba por cansar-se
e desejar a presença actual de quanto ele projecta
num futuro possivel ou improvável Ele volta-se
para a pura possibilidade de ser quanto deseja
para ser ele próprio entre o príncipio e o fim
E como quem levanta um largo pano branco
para projectar uma imagem ou uma sombra
depõe a página sobre a mesa do vento
e escreve na violência da frescura estas palavras
Eu escrevo para que o universo diga sim no puro espaço
e esse sim ressoe no meu peito aberto

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