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22 de Setembro de 1999
Eduardo Lourenço
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A POESIA E O POÉTICO
«Há sempre uma não coincidência entre o espírito absoluto e a sua expressão»
Hegel
Qualquer grande livro de poesia é, inevitavelmente, uma reflexão sobre o poético porque a escrita poética, por mais próxima que esteja do mundo das coisas, implica um afastamento essencial, uma suspensão da vivência das coisas na sua aparente imediatidade, o que implica um simultâneo enriquecimento e empobrecimento. O poeta sabe disso e mesmo que não seja essa a sua intenção primordial, a sua escrita manifesta esse deslocamento. Por isso, toda a poesia é da ordem do problemático e a relação do poeta com a sua obra é um elemento
intrínseco à própria obra, ainda que esta relação possa ocorrer de múltiplas maneiras, incluindo a sua voluntária recusa.
A interrogação acerca do que pode ser o poético (não tanto a poesia que é apenas uma das formas possíveis do poético) permanece, por conseguinte, uma questão essencial que é recolocada pelo simples acto de escrever, pelo menos quando essa escrita não se aconchega na «literatura», isto é, na procura obstinada de ‘efeitos literários’.
Estes dois livros de Ramos Rosa e de Maria do Rosário Pedreira têm a incomparável virtude de se afastarem do literário aproximando-se, por isso, da sua própria essencialidade.
Mas o que pode aproximar estes dois livros tão diferentes, para além da quase coincidência temporal da sua publicação e desta atitude em relação ao ‘literário’? Diria que o que os une é o registo ontológico em que se desenvolvem e, no interior deste, uma ontologia do vazio ainda que diferentemente interpretada. Liga-os, ainda, a importância concedida à palavra, embora também neste caso, ela ocupe distintos lugares no interior das respectivas mundivisões.
Existe ainda uma outra razão para que fale, conjuntamente, destes dois livros.
É que ambos foram, para mim, o revisitar de antigas revelações. Ramos Rosa foi, de todos os poetas portugueses, aquele que mais marcou a minha experiência da poesia, num grau só comparável aos casos de Rilke ou de Hölderlin. Durante um certo tempo mantive-me, no entanto, relativamente afastado desta poesia de tal modo que a leitura de O Aprendiz Secreto constituiu o revisitar de uma antiga paixão.
Quanto a Maria do Rosário Pedreira, não posso nunca esquecer a profunda emoção que senti, em plena livraria, ao ler o poema da contracapa do seu primeiro livro de poesia, A Casa e o Cheiro dos Livros (Quetzal, 1996) que permanece, até hoje, um dos textos poéticos de que mais próximo me sinto. Lembro-me também de ter, então, dito à autora que um dia escreveria
sobre ela. Eis-me, pois, a cinco anos de distância, a cumprir essa promessa.
Mestria e pacificação
O livro de Ramos Rosa revela a mestria de alguém que há cinquenta anos escreve mantendo toda a sua força criadora e toda a profundidade de uma expressão que sem abandonar o seu espaço privilegiado, a palavra, se ergue ao nível cósmico, à relação mais íntima entre a palavra e o cosmos reflectindo os mecanismos de criação poética na sua ambivalência expressiva e cósmica e, ao mesmo tempo, na sua extrema (e absolutamente necessária) solidão. É toda a infinita sabedoria do poeta que se manifesta neste livro, todo ele feito à volta da ideia de construção. Mas manifesta, simultaneamente, aquele grau de sublimidade que lhe permite
escrever «Não é altura de afirmar nada. Tudo deve permanecer oculto na sua inanidade (e unanimidade) inabordável» (p. 9), permanecendo, afinal, exactamente no mesmo ponto em que estava no momento em que a escrita se iniciava. Livro em que o pormenor, «um vislumbre, uma pequena sombra» (p. 42) é essencial, em que a breve sensação toca a maior profundidade, O Aprendiz Secreto desenvolve uma imensa e única metáfora material que põe em contacto os dois mundos: o das coisas e o das palavras (ou vice-versa). E este é, talvez, um dos pontos de maior proximidade com O Canto do Vento nos Ciprestes.
No entanto, enquanto o livro de Ramos Rosa se escreve num espaço de (pelo menos) aparente paz ou pacificação, própria de quem atingiu uma sabedoria e um despojamento que é o resultado de um longo exercício de vida, o livro de Maria do Rosário Pedreira existe numa infinita amargura, situando-se num momento de vida em que o maior conhecimento é ainda impotente para apaziguar a dor da mais infinita desolação. Esta diferença – compreensível pela
diferença de idades dos autores é, todavia, mais do que isso: remete para distintos modos de existência. Enquanto em Ramos Rosa a poesia é uma deliberada e compulsiva convocação do poético, donde deriva a concepção da poesia como um quase ofício, constantemente
exercitado, a escrita de Maria do Rosário Pedreira parece ser desencadeada por um certo número de imagens essenciais dependentes de particulares ‘acontecimentos poéticos’; aparentemente é necessário um certo tempo para que a sua relação com o mundo se condense numa particular sensibilidade, numa imagem fundamental que abre para o questionamento do sentido das coisas.
Dir-se-ia que se em Ramos Rosa o poético é o seu único modo de existência, Maria do Rosário Pedreira existe num mundo em que o trágico é sempre concreto e mesmo que admitamos que a poesia existe antes da própria escrita, existe sob a forma de um vazio que é de natureza eminentemente mundana.
Qualquer um destes livros situa-se, portanto, num espaço de luta: do poeta contra os limites da dizibilidade; do poema, enquanto forma de vida, contra o risco da insignificância.
Ambos os textos são, assim, uma aproximação ao essencial, àquele espaço onde a existência se confronta, de modo mais ou menos directo, com os seus limites intrínsecos. Num caso como no outro, se trata, pois, de construção: do poema como metáfora inabitável ou da sombra infinitamente dolorosa da solidão.
A ausência suspense
O extremo encanto (e encantamento), sempre magoado, de O Canto do Vento nos Ciprestes – livro de pequenas histórias de vida e de morte, de solidão e de desespero, de memória e de abandono – reside, em grande medida, no jogo de reenvios entre a mais íntima simplicidade dos sentimentos e a cosmogonia (e cosmologia) que, simultaneamente, reflecte essa simplicidade e é reflexo dela. Nisto se afasta de Ramos Rosa onde este tipo de reenvio se configura como repetição porque tudo é, desde o princípio, equivalente.
O livro de Maria do Rosário Pedreira é, pois, marcado pela continuidade e pela
descontinuidade, simultâneas e indiscerníveis, do eu mais frágil e da fragilidade intrínseca do criador. Do mundo e do próprio eu enquanto o eu é totalmente pobre, tão pobre que nada é seu e tudo do outro (p. 63). De um outro tão infinitamente afastado como infinitamente próximo, nos seus restos, nos seus traços, no próprio eu abandonado que só vive por essa distância e que, desse modo, torna a distância uma espécie dramática de proximidade. Tudo se condensa no outro enquanto distância, enquanto ausência. Poesia, pois, feita de ausência, poesia que afirma a ausência e, simultaneamente, a suspende. Esta ausência suspensa constitui, talvez, o núcleo da experiência poética que nos transmite este livro. E não menos importante para a sua compreensão é o facto de essa distância se manifestar através de circunstâncias múltiplas (morte, separação) mas que são sempre equivalentes, como múltiplos são os interlocutores deste monólogo, ou, pelo menos, a sua circunstancialidade.
Há, nestes poemas um desejo obstinado de diurnidade, de plenitude: o que seria a presença, o encontro; mas há, precisamente no mesmo tempo e sobre a mesma linha, mais do que a tentação, a certeza da irrevogabilidade da distância, a impossibilidade do acontecimento de que o poema é, ao mesmo tempo, a expectativa e a (não) memória. O Canto do Vento nos Ciprestes é, por isso, o choro de alguém que, mesmo sem sair a porta, conhece profundamente os segredos do mundo. O livro desenvolve-se, assim, em dois registos inteiramente distintos que correspondem, um, aos poemas inicial e terminal e o outro a todos os que entre eles se encontram, desenhando, desse modo, um espaço de asfixia que é o modo próprio de ser deste eu que espera o que sabe que não virá e de que estaria pronto a fugir, caso a vinda se concretizasse.
Sentimos, assim, quase insensivelmente (e o paradoxo é aqui, estritamente necessário), que o amor não é (apenas) um sentimento, mas o modo de ser, o único que tornando o sujeito pobre o torna infinitamente rico porque lhe permite ser aquilo que é, mesmo que isso seja, absolutamente nada, ou, numa versão positiva, simples testemunha.
Opera aqui, é preciso sublinhá-lo, uma teoria da dádiva: e é só aí que a palavra existe plenamente: como a insistência na afirmação da beleza da criação, desse modo cumprindo o eu a sua função de testemunha e de interlocutor, função para que foi expressamente criado. A dádiva – equivalente à vida – só existe como absoluta e infinita, como apagamento de quem dá e por isso o amor é, aqui, a metáfora, a única metáfora de todo o livro ou, pelo menos, a única que não tem o «efémero estatuto de metáfora» (42). Sobretudo porque é, essencialmente, metáfora de si mesmo.
E o amor é não mais do que o choro de um ser frágil, ponto singularmente imaterial entre dois tempos de conhecimento do ser: o sentido e a intensidade do ser intrinsecamente frágil que existe no interior de um saber ontológico constantemente convocado sob a forma de ligações entre o sentimento e a natureza, por exemplo, o que longe de atenuar a intensidade da existência sofrida antes a intensifica, elevando-a ao plano cósmico.
Um dos elementos poéticos mais importantes deste livro reside numa indecidibilidade essencial entre o cosmológico e o individual: nunca sabemos, verdadeiramente, qual plano é o originário. De modo que constituem-se duas séries paralelas e simultâneas que constantemente reenviam de uma para a outra o que faz com que a simplicidade deste livro seja só aparente: funciona apenas se o lermos nas suas partes, poema a poema, enunciação a enunciação, ou mesmo quando, reconhecendo a arquitectura ontológica do sistema poético, a separamos da dimensão imediata, isto é, do choro do sujeito poético.
A criação do mundo, como a sua alma é a forma englobante e, por contraposição,
intensificadora, da distância onde tudo se inscreve e onde tudo existe. Por isso o criador carece de uma constante afirmação da beleza da sua criação.
Por caminhos distintos, Ramos Rosa e Rosário Pedreira chegam a um espaço idêntico em que a distância é o elemento de ligação.
Melhor, no entanto, do que reconhecermos a situação deste sujeito sempre central, a sua fragilidade, como metáfora do homem no mundo, será sublinhar, por conseguinte, a indecidibilidade entre as duas séries, afirmar a sua sobreposição contínua e constante. Deste modo, um livro que parece quase excessivamente centrado no sujeito lírico, abre-se a uma ontologia do indecidível onde o que vale é, precisamente, a negação das metáforas, aquilo que se perde na metáfora, aquilo que só poderia ser dito literalmente mas que, ao sê-lo, corre o risco de se tornar mera expressão de sentimentos. Daí a função capital desempenhada pelo poema de abertura, A criação do mundo e pelo poema final, Anima Mundi.
Em Maria do Rosário Pedreira, também as palavras obedecem a uma lógica dupla do tudo e do nada. Poemas feitos de sensações e não de palavras, estas limitam-se a tentar calar o choro, mas de uma forma tão convulsiva e repetitiva como ele. É por isso que as metáforas são quase sempre cósmicas operando como elemento de ligação (de conhecimento) entre dois planos (ou seres) que, inseparáveis, estão, todavia, separados.
Não se trata, nunca, de explorar os efeitos da aura da palavra, os seus equívocos, as suas indecisões ou indecidibilidades semânticas e semióticas como acontece tantas vezes em Ramos Rosa. É antes uma poesia imediatamente feita de sentimentos: a linearidade textual insinua-nos essa imediatidade, mas, no entanto, no seu conjunto, o livro constrói (ou reconhece) uma mediação: o que se exprime não são os sentimentos imediatos do sujeito lírico, mas o espaço onde esses sentimentos ressoam infinitamente, tornando o sujeito quase uma forma de eco.
Daí uma das formas mais essenciais em que esta poesia se desenvolve: a indecidibilidade.
Mas, por outro lado, a distância (do outro) implica o apagamento das palavras e,
consequentemente, a indiferenciação de todas as coisas na medida em que não podem ser nomeadas. Donde a existência seja feita de silêncio. Só a palavra (do outro) tem o poder de fazer com que as coisas falem: «Na tua boca cantou subitamente uma voz./ E, ao dizeres o meu nome na rede de um abraço,/o rio que outrora bordava o campo emudeceu/com as suas pedras lisas. Então, foi possível// ouvir o vento soprar nas asas das borboletas/ e os lagartos recolherem-se nos veios dos muros/ e o sol ferir-se nos espinhos das roseiras.» (p. 15).
A voz do outro apaga os ruídos do mundo, os ruídos que criam a ordem visível (e, dir-se-ia, natural) do mundo, deixando então ouvir a natureza profunda de todas as coisas. Mas, ao mesmo tempo, essa transmutação é mais ilusória do que real, em razão do seu carácter momentâneo: «bordar uma toalha/para logo a manchar de vinho» (p. 22) e «Se não me amas, porque me avisas assim da dor?» (p. 23).
As palavras são, por conseguinte, algo de essencial nestes poemas, não precisamente ao nível da construção do poema mas ao nível da construção da realidade de que o poema é, simultaneamente, condição e expressão. O poema constitui-se como o único modo que possibilita a existência das coisas, embora sempre no modo da distância. O poema existe porque não existe a voz do outro; e o outro é presente apenas porque o poema existe: «Se terminar o poema partirás (...) não estarias aqui se eu não escrevesse» (p. 28).
No entanto, a convocação do outro pela escrita é, ainda, um acto de uma extrema fragilidade; não só pelo inevitável círculo que encerra e em que se encerra, mas porque o outro indisponibiliza a sua presença, furta-se à convocação: «Mas agora pedes-me que pare, que fique por aqui» (p. 27). Porquê? Porque essa a sua natureza, essa é a natureza de todas as coisas, destino inscrito desde a génse, nessa fragilidade essencial que exige a constância do testemunho.
Tudo está, pois, dependente de um olhar e de uma palavra. O risco do total apagamento é tão constante como é inevitável.
E, no entanto, não o esqueçamos, é do amor que sempre se trata. De um amor no qual reside a possibilidade de existência do mundo. Mas que amor é este que, desde o início, vive da desesperança, do conhecimento da impossibilidade: «O meu mundo tem estado à tua espera; mas/não há flores nas jarras, nem velas sobre a mesa» (p. 13). Amor que reflecte a contingência de tudo, amor impossível, mas, por isso mesmo, mais amor, amor mais absoluto.
Em rigor poder-se-ia dizer que nestes poemas, Maria do Rosário Pedreira, colocando-se do lado do impossível constrói uma poesia que, diferentemente da de Ramos Rosa se não liga ao indizível, mas se instala, dolorosamente, no invivível da existência como distância, como espera do que não pode ser. Todo o livro (toda a existência?) está suspenso de uma palavra que é gesto, que é a história não escrita do mundo.
É preciso ainda falar da beleza destes textos. Uma beleza de imagens que condensam os sentimentos e que, simultaneamente, constituem os pontos onde as duas séries se encontram, dando forma e visibilidade a algo que pertence a um outro regime ontológico, ao invisível: ao apenas perceptível. Dessa beleza fazem parte elementos tão aparentemente abstractos como a reversibilidade entre o eu e o outro que pertence ao mesmo regime de sentido que a reversibilidade entre o sujeito e o mundo.
Se os poemas de Maria do Rosário Pedreira existem num registo eminentemente lírico que bebe as suas origens no romantismo, desenvolvem-se, ao mesmo tempo, numa extrema precaução metafísica, sabedora de que a metáfora é, muitas vezes, um modo eminentemente artificial de gerar efeitos poéticos. A metáfora é uma prisão: «o meu amor (...) sangra quando o encerram em metáforas» (18) ou «(...) quando morrer de amor/não tinha ainda perdido o efémero estatuto de metáfora» (p. 42).
As metáforas são, em muitos casos, em Maria do Rosário, tão elementares que se negam como metáforas, tornando-se imagens concretas, simplesmente desenhadas por uma suavidade discursiva que penetra no âmago da precariedade da existência e que nos faz a nós, leitores, desejar o poder demiúrgico de criar um mundo onde as palavras essenciais como os acontecimentos essenciais não fossem escondíveis (cf. p. 68) e onde estes poemas, exactamente estes, não precisassem da distância como seu alimento natural.
Uma ontologia do essencial
Há, em O Aprendiz Secreto, uma espécie de abandono da arte poética (ou melhor: da arte da poesia), uma espécie de cansaço da arte, de cansaço da construção na medida em que, enquanto tal, não pode libertar-se completamente do artifício. Agora não há espaço para continuar a construção da forma quase metódica que tinha sido tão característica do autor.
Tudo está dito excepto o que não pode sê-lo, como escreve num outro livro publicado pouco
tempo depois: «O que poderia dizer eu já o disse/ e nunca o disse Ou talvez nunca o direi/ E é nessa extrema margem da minha ignorância/ que escrevo com os olhos fechados para ver/ o que nunca poderá ser visto ou que eu vejo sem ver (...)/ Por isso poema é um desvio oblíquo/ uma distância que avança para outra distância» (Deambulações Oblíquas, Quetzal, 2001, p.15).
Em O Aprendiz Secreto, não se trata já de explorar caminhos, de suscitar aberturas. O tempoda exploração é um tempo passado inteiramente integrado, no entanto, no tempo presente que é, essencialmente, um não tempo. Agora, o poeta e a obra são uma e a mesma coisa e trata-se, simplesmente, de o dizer. Mas esta ‘nova forma’ não significa o encerramento de um percurso, mas antes a mais pura identificação com ele. Significa a compreensão definitiva do character circular desse percurso. Longe de significar uma passagem do poético ao reflexivo, representa antes a condensação poética naquilo que é a sua incontornável essência: a impossibilidade de dizer o que mais importa, sendo que, no entanto, na manifestação dessa impossibilidade algo de radicalmente essencial é dito.
O ser e a separação inscrevem-se, agora, mais do que nunca, numa espécie de fita de Moebius e toda a poesia se torna esse não percurso. Da pluralidade (de caminhos, de suscitações pela palavra), passa-se a uma unidade, a da obra, de que a construção é a face visível. É, afinal de uma nova forma de repetição que se trata; repetição que foi sempre uma das palavras-chave do gesto poético roseano que esclarece: «Alguns dizem que eu escrevo de mais/ como se tivesse escrito alguma coisa/ Não, todas as minhas inscrições foram acenos/ a algo que nunca atingi/ e que era a única coisa que eu desejava dizer// Sei hoje que talvez não fosse nada...» (Deambulações Oblíquas, p. 35).
O mais notável n’O Aprendiz Secreto é, talvez, o modo como a poesia e a reflexão se entrelaçam, se unem num discurso que, todavia, nada tem de híbrido. Como se o poema – que é, em Ramos Rosa, sempre reflexivo – se encontrasse, de súbito, perante a necessidade de se olhar não tanto na sua vertente propriamente criadora, mas nas condições em que essa dimensão se exerce, nesse espaço mágico em que as palavras são o caminho não para ascoisas, mas das próprias coisas.
Pausa sem paragem, reflexão sem suspensão da criação propriamente poética, O Aprendiz Secreto é ainda, na sua natureza mais íntima (e secreta), a afirmação da indistinguibilidade da obra e do mundo, de um mundo que não é outra coisa do que o ser na multiplicidade das suas formas, reais e possíveis, visíveis e invisíveis. Corresponde, de certa maneira, à coincidência plena da distância e da proximidade, isto é, ao modo próprio de tudo ser, na sua diferença entre plenitude e possibilidade, entre nocturno e diurno, entre continuidade e diferença: «A continuidade do tempo é a sucessão de presenças e ausências, de elevações e quedas, de desaparecimentos no seio do aparecer, de enxames de sombras nos círculos luminosos» (p. 43). Este livro é, por isso, simultaneamente, a imagem e o facto da indissolubilidade da obra e do ser na sua separação e nas formas da sua continuidade.
O inexprimível
Se a poesia existe porque existe o inexprimível (O Aprendiz Secreto, p. 64), o que Ramos Rosa nós dá neste livro é a teoria concreta da nossa relação com esse inexprimível. A construção é, assim, e quase paradoxalmente, a do próprio inexprimível, tudo se processando num círculo infinito que se não tem, evidentemente, saída, não tem, também, nenhum ponto que possa ser visto como entrada. Neste contexto, compreende-se que a construção não é metáfora de coisa nenhuma: não é imagem da criação do poema nem da construção da vida: é o próprio facto da indissolubilidade dessas duas coisas. Se «A construção da morada é sempre uma reconstrução do corpo» (p. 74) , não é menos verdade que «A finalidade da construção não é a obra acabada para ser habitada finalmente na tranquilidade de um repouso merecido» (p. 71).
A construção justifica-se no próprio ser, na fractura que lhe é inerente. A separação não distingue duas coisas ou duas naturezas mas dois modos do mesmo. O vazio é o plano subjectivo (ou melhor, em linguagem fenomenológica, o noético) dessa fractura. Distingue, também, dois pólos. O construtor habita o vazio porque sente a distância como pura negatividade e não, ainda, como possibilidade do encontro. É a mudança radical deste modo de sentir que deve ser propiciado pela construção; que é a construção. Por isso, «A habitação será, assim, uma realização do ser, reconhecida como abertura essencial da terra e consagrada, na sua mudez,
como a energia livre que reúne em si o vazio e a plenitude» (p. 67). Ou ainda: «A construção revela (...) a sua essência unitária e criativa, na medida em que se torna habitação pura de um espaço unificado e novo» (p. 68).
Mas o que faz nascer este movimento? Por um lado, a vivência do mal-estar; por outro, alguma coisa, no interior do ser, que indicia o segredo do próprio ser; vejamos como Ramos Rosa dá conta deste duplo processo: «Tudo se passa como se uma verdade oculta a cada momento ameaçasse a soberania da verdade aparente dos nossos hábitos (...) Essa verdade, que é a verdade do corpo e dos sentidos, foi suprimida pela visão que a integrou em si, apagando-a completamente na sua visibilidade imediata e na sua presença total. Mas entre a visão e os sentidos a diferença subsiste sempre e essa diferença manifesta-se na iminência de algo desconhecido ou num mal-estar ou ansiedade inexplicável. É esta parte secreta do ser que se subverte violentamente quando o construtor se entrega ao fluxo criativo» (p. 72).
Simultaneamente, «A construção não seria possível sem uma nesga de luz ou uma pequena formação do espaço se não se tivesse constituído no abismo obscuro da psique do construtor» (p.57). Ainda aqui encontramos a conjugação de factores objectivos e subjectivos. O construtor é (não representa) a dimensão de suspeita do ser, de suspeita da distância que fende a unidade. Todavia, é também esta distância a condição do (re)encontro das partes.
É, por outro lado, nesta nesga de luz que emerge o instante, isto é, aquele momento privilegiado em que o construtor e a construção se tornam, de facto, uma participação no ser.
Como escreve Ramos Rosa, «O ser é assim a construção de si mesmo» (p. 29) e a própria distância é produtiva. O construtor não se opõe ao ser; está ligado a ele indissoluvelmente e a construção visa, simplesmente, preencher o vazio (que é ainda ser) com o espaço da habitação: «A habitação será, assim, uma realização do ser, reconhecida como abertura essencial da terra e consagrada, na sua mudez, como a energia livre que reúne em si o vazio e a plenitude» (p. 67).
Tudo se passa, pois, no interior do ser, na passagem do ser que aspira à unidade; mas mesmo esta unidade é já originária: «A habitação terrestre do ser reconciliado no seu espaço inicial e na sua pura finalidade originária» (p. 61).
Todavia, na unidade do ser existe uma falta essencial, um lugar onde emerge o desejo. O construtor nasce dessa falta, do desespero que ela provoca em si: «O construtor sente como ninguém a inexistência de indícios divinos tanto na realidade exterior como no seu interior. É na mais completa solidão que se inicia a sua construção...» (p. 30). E essa construção não tem outro objectivo que não seja a reposição da unidade originária: «Todo o gesto construtivo tem como objectivo essencial a integridade do ser» (p. 55). O não ser do ser – o vazio – é o efeito da nomeação, do homem que institui a separação pela ruptura com as ligações naturais, com a unidade original. É uma separação que, todavia, desde o início espera pelo construtor. A visão é instituidora da diferença. Mas, em contrapartida, a construção, enquanto ultrapassagem desse abismo imanente ao ser, constitui um movimento em que todas as diferenças, todos os vazios, todos os abismos, são integrados numa unidade que recupera a continuidade: «O que há de inesperado e surpreendente em cada gesto construtivo é a emergência, através do vazio, de um ser uno que se projecta, de diferença em diferença, e todas as diferenças unifica no seu impulso ao mesmo tempo imemorial e inovador» (p. 60). Vemos, deste modo, que em Ramos Rosa, a poética só pode ser pensada como ontologia porque a palavra, o acto original da nomeação se inscreve no espaço de simultaneidade da «flexibilidade da brisa e o peso maciço do ser» (p. 15). Daí a importância do instante (dimensão ontológico-temporal privilegiada pelo autor: «Celebrar o instante é consagrar a unidade na diferença e a sua virgindade inicial como a possibilidade da contínua renovação do ser» (p. 14). O instante é o ponto em que a distância se compreende como a essência do encontro: «A essência da distância é a essência do encontro, do espaço renovado. Sem a distância nenhuma construção poderia ser habitável nem nenhum horizonte visível» (p. 28).
Sem distância não haveria encontro mas coincidência inconsciente: «É então que ele encontra a forma do ser como se o longínquo se tornasse acessível na distância» (p. 24) e «O mundo surge então como criação do mundo...» (p. 36). O presente, sobretudo sob a forma do instante, é a dimensão essencial porque é nele que, sob certas condições – precisamente aquelas que o construtor visa convocar – a origem e a finalidade se conjugam. Isso será a obra, noção onde se notam inequívocas ressonâncias alquímicas, por efeito da palavra que é o agente da transmutação: «O corpo, então, sente-se contemporâneo e cúmplice do grande círculo do ser em que os montes, o mar (...) são presenças vivas dele próprio reencontrado no espaço solar da unidade natural» (p. 74).
Conclusão
Se a poesia de Ramos Rosa é um infinito monólogo com o ser no interior de uma ontologia inequivocamente optimista, a de Rosário Pedreira é um diálogo com as sombras onde não há qualquer hipótese de ‘salvação’. A uma materialidade indeterminada em Ramos Rosa opõe-se, em Maria do Rosário Pedreira, uma materialidade concreta e impenetrável. É, pois, mais de impenetrabilidade do que de indizibilidade que esta poesia nos fala; o inexprimível é a própria vida, a ausência de espaço, essa espécie de asfixia. Mas a saída não seria a expressão: «Nenhum poema/ podia ser o chão da sua casa» (O Canto do Vento nos Ciprestes, p. 18). À ideia de uma possível saída opõe-se o segredo «Mas se há naufrágio guarda-se segredo da tragédia» (p. 71). E opõe-se, ainda mais radicalmente, esse gesto absolutamente
incomensurável e indescritível «de quem subiu /à escarpa e, iludindo a arquitectura da luz, espreitou/ impunemente no decote do mundo e lhe arrancou a alma» (p. 71).
E, no entanto, há uma relação essencial com o mundo que obedece à lógica do paralelismo: «Quando me abraças pulsa nas minhas veias a convulsão/ das marés e uma canção desprendese da espiral dos búzios» (p. 25). É essa relação que constitui, afinal, os «retratos efémeros» (p. 71) e autoriza esse extraordinário verso que diz: «Os vermes/alimentam-se dos sonhos de quem morre» (p. 31). O choro encontra, assim, a sua dimensão de algum modo gloriosa.
O que existe de comum entre Ramos Rosa e Maria do Rosário Pedreira é, sobretudo, o facto de a poesia estar sempre antes das palavras que a exprimem, num antes que, por não ser temporal, pode também ser depois. Trata-se de uma prioridade ontológica que anula qualquer hipótese de cosmética literária ou ideológica. Em ambos estamos perante um sentimento de ser que as palavras circundam, indiciam, insinuam, mas também, simultaneamente, obscurecem e afastam, precisamente pela sua quase extrema materialidade, pelo sempre presente risco da metáfora. E estamos, seguramente, perante duas extremamente belas e tocantes obras.
Publicado originalmente em Cyberkiosk, 2001
Rui Magalhães
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António Ramos Rosa: a transparência da terra
[diálogos]
Rosa Alice Branco e Rodrigo Petrónio
RAB – Embora esta seja uma antologia de poemas, penso que é
importante começar por aquilo que Ramos Rosa entende ser o papel da Poesia.
Neste sentido, escreve em Poesia Liberdade Livre: “a poesia continua, sob o
mesmo signo, a ser o lugar dessa aventura e desse debate espiritual, que é
porventura, o maior e o mais significativo do nosso tempo”. Penso que a leitura
do livro vai revelando como Ramos Rosa habita esse lugar que, segundo ele,
“tende à essência humana”.
RP – Sim. Mesmo sabendo que o autor não tem autoridade sobre
o que escreve e não dá a última palavra ao sentido de sua obra, é muito
interessante traçar um paralelo entre os trabalhos poético e o ensaístico de
Ramos Rosa. Em ambos podemos notar uma unidade de pensamento no que diz
respeito à dimensão que compartilham: a liberdade. Mais que isso: a liberdade
pairando livre até de si mesma, como no verso de Rimbaud. Tanto sua poesia
quanto seus ensaios se preocupam com a revolução, não entendida como
engajamento em uma causa externa, mas sim no seu sentido etimológico: aquilo
que se volta sobre si mesmo e retorna à sua origem. As palavras livres e
revulsivas tomam seu próprio pulso e, como reino do possível, se proclamam como
a mais densa das realidades prováveis. Contra o telos do fim, todas as
teleologias e doutrinas salvíficas que engendraram concepções equivocadas de
progresso, escamoteando suas intenções maliciosas, e não fazem nada mais que
empobrecer as possibilidades humanas em uma época de "imperialismos
ideológicos" e de "desumanização", como diz o poeta, temos o
arco dobrado sobre a lira. Em sua dimensão autotélica, o poema é a maior
revolução possível, porque espelha a concordância do pensamento consigo mesmo
e, com isso, a mais profunda forma de engajamento. Os signos em rotação são a
conseqüência lógica de um pensamento que se abre ao analisar suas próprias
engrenagens: cisão com o modelo descritivo, representativo e positivo da
linguagem, o poema não narra, descreve, diz ou veicula nada. O poema, nas
palavras do crítico Eduardo Prado Coelho, "acontece". Esse
acontecimento é desvelamento mas também é ação: retorno ao estado elementar do
mundo e repúdio radical a toda tentativa de tentar transformar o homem e a
palavra em instrumentos do que quer que seja.
RAB – A transformação é, na verdade, outra. Na sua poesia a
inserção do homem no seio do mundo é operada pela palavra: geradora, rito de
passagem e circulação entre eles. A palavra é tanto mais cópula entre ser e
mundo, quanto mais pobre, já que a pobreza, tal como a ignorância, são as
qualidades requeridas para abrir o espaço do encontro, pois a palavra e objecto
de sentido identificam-se na sua poesia que se quer pura presença, tentando
escapar à dimensão representativa. Em O Incêndio dos Aspectos escreve: “Ó
árvore ó palavra ó árvore” . E reencontramos essa indistinção originária de que
falas, mas agora entre a palavra e o objecto evocado. Porque o objecto nunca é
meramente evocado ou enunciado, mas invocado e convocado para esse incêndio de
todos os aspectos que é a poesia de Ramos Rosa. A palavra gera, na medida em
que cria o mundo dos possíveis e é operadora da transformação do possível em
real. Se Leibniz nos dizia que o real não é da ordem do possível, mas do
compossível, aqui todos os possíveis são a priori compossíveis. Por isso, na
poética de Ramos Rosa cada coisa pode ser tudo e nada, o que nos leva à
polissemia infinita da palavra. Em Ciclo do Cavalo, por exemplo, “cavalo” é, na
verdade, um termo camaleónico. Mas nunca deixa de ser cavalo, mais cavalo
ainda, ao receber todos os movimentos e todos os objectos na carne da sua
palavra. Numa entrevista, Paula Cristina Costa nota que a arte poética de Ramos
Rosa é uma metapoética, com o que este concorda inteiramente. Mas seria preciso
aclarar em que consiste a especificidade desta metapoética, em que a
interrogação sobre o poema acrescenta ao ser o não saber de si e o amor da
busca para pertencer ao mundo, que é também o mundo das palavras. Neste
belíssimo livro que acaba de sair agora – Génese seguido de Constelações –
lemos: “Escrevo para ser contemporâneo das nuvens/para pertencer à nua e pobre
pátria inerte”. Talvez por isso Ramos Rosa ache que a metapoética se
correlaciona com a metafísica, na medida em que esta é a reflexão do poeta
sobre a percepção do mundo. Mas, de facto, em Ramos Rosa, esta reflexão é
apenas a luz que as coisas lhe devolvem em forma de palavras.
RP – Creio que aqui você tocou em dois pontos centrais: a
poesia como operação metalingüística e como metamorfose, completa
reversibilidade, por meio da palavra, entre o possível e o provável. A
metamorfose se dá mediante uma visão radical daquilo que você vem conceituando
de maneira ímpar, a partir da obra de Lévy-Bruhl, como “participação”. Aliás,
esse conceito pode ser uma verdadeira chave para a leitura da poesia moderna.
Todas as coisas são o cavalo porque todas as coisas que o predicam participam
indiscriminadamente em sua essência. Não há anterioridade da essência em detrimento
do atributo, mas decalque, tatuagem, inscrição, espelho que produz e altera
todo o rosto. Poder-se-ia dizer que Ramos Rosa, à maneira de um curioso
nominalista do século XX, não depreende o ser dos objetos de uma substância
primeira, de sua ousía, não define o particular a partir do seu grau de
adequação a um pressuposto universal, mas sim faz o universal participar e se
imiscuir, enquanto haeccitas, indistintamente em todas as ocorrências
sensíveis, particulares e acidentais, que são elevadas a uma dimensão
transcendente sem perder sua especificidade empírica, sua radicação ôntica,
concreta, ou seja, sua estidade. Essa operação se dá também em um belo livro
como Pólen-Silêncio, onde os atributos vegetais são distribuídos e aplicados a
uma gama enorme de fenômenos e objetos, alheios ao domínio específico deste
reino. O jardim, neste livro, torna-se maior que o universo, ele próprio vira
um universo-vegetal do qual nosso universo, tal e qual o conhecemos, seria uma
só ramificação, assim como para alguns povos arcaicos, como bem observou o
grande filósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva, todo o mundo sublunar não
passa de um ramo da árvore-deus Yggdrazil. Disso infiro que possamos ler a
poesia de Ramos Rosa sob o signo de um conceito: a transparência. Desmanchando
as zonas de opacidade que demarcam cada objeto e a despeito da causa formal que
modela cada ente, Ramos Rosa filtra a percepção e a faz coincidir com a luz.
Não a luz que ilumina o rosto, o lumen referido pelas doutrinas de pintura
renascentistas, tampouco a luz tomista, a centelha de consciência que Deus
instila no homem por meio da sindérese, mas sim aquela que circula nas veias do
mundo e é o seu princípio mesmo de inteligibilidade. Transpondo todas as
formalizações, na viagem que esta poesia empreende rumo àquela zona anterior e
originária, à matéria indistinta dos deuses, bem poderia ter dito Konstantinos
Kaváfis, pode-se muito bem dizer que as árvores “sob o mágico sopro da luz são
barcos transparentes”. E assim temos uma partitura de conceitos e imagens em
permanente metamorfose. Há alguns eixos: amêndoa, verde, pobreza, luz, sombra,
água, fogo, pólen, veludo, pedra, árvore, nudez, sol, ar, terra, sexo, corpo.
Como agenciadores de sentido, criam núcleos magnéticos e captam os objetos em suas
redes de imagens. São devires, no sentido que Deleuze dá à palavra, e assim
articulam uma política de devires. São o devir animal, o devir planta, o devir
pedra, o devir terra, entre outros, e, por extensão, a transposição de toda
contingência e de todo condicionamento por meio da livre predicação: a voz que
fala no poema é mulher, barco, praia, vegetal, folha, pedra, parede, criança,
entranha, vento, bicho, e, mais que isso, um acorde composto de todos esses
elementos. Essa realidade expandida se dá sempre em um âmbito metalingüístico,
porque, de saída, já se supõe que a palavra cria o mundo, não que o mundo seja
representado pela palavra e esta, o seu sintoma, como rezam os obsoletos
argumentos da sociologia. O mesmo Deleuze diz que a política é anterior ao ser.
Ramos Rosa poderia retificar a assertiva, e propor-nos que a palavra é anterior
à política, entendida aqui como toda a zona de projeções e representações, como
toda a objetivação do espírito e todo o campo fenomênico que se possa aduzir.
No Brasil, onde ainda vigora uma concepção pobre de metalinguagem, que eu
defino como um fetiche do significante, algo da ordem da sexualidade (e da
política) recalcada, esta poesia pode ser preciosa e alterar todo um cenário
cultural. Pois ela alude ao real, mas nos despista com uma falsa positividade;
é um fato de linguagem, mas o tempo todo se propõe como encenação e minimiza a
importância da técnica e do artifício, visto como algo secundário, irrelevante
e, em último caso, pueril. Inscrição indicativa que obriga o leitor a recorrer
os seus rastros e resíduos para percorrer o seu verdadeiro sentido, a poesia de
Ramos Rosa, de fato, como você diz de maneira exemplar, aponta para uma
metafísica, mas a concebe como fantasma e simulacro. Pura imanência do tecido verbal
e articulação de imagens e pequenos mitos que produzem mundos, o único enigma
que há é o fato de todas as coisas serem banhadas pela luz inexplicável da
transparência. Se há mistério, ele nasce de não haver mistério nenhum, para
lembrar Caeiro. Se há Deus, e ele é um círculo, o é na medida em que sua
circunferência está em toda parte e seu centro, em parte alguma, invertendo-se
os postulados. Por isso cada coisa que existe pode ser outra e outra e outra,
ad infinitum, circulando na periferia infinita das infinitas circunferências
que Ramos Rosa apõe ao real e mobiliza em sua criação. Eis o seu princípio de
excentricidade, que é exemplar. Depois do longo processo de entificação do ser
levado a cabo no Ocidente, processo este que praticamente se confunde com a sua
história, finalmente os entes podem circular, na ubiqüidade da seiva que os
modela e os funda, para além deles próprios e para além dos limites de todos os
conceitos.
RAB – Essa limitação dos conceitos é claramente posta em
relevo por Ramos Rosa no texto “Mais silêncio mais sombra” do último número da
revista Espacio/Espaço Escrito, em que a metade portuguesa lhe é, toda ela,
dedicada. É um texto surpreendente em que condensa o imo do seu universo
poético. Ao lê-lo, senti e sinto a emoção da transparência que nos dá a ver a
transparência do devir do mundo. É um texto pleno de esperança na palavra como
agente transformador: “O vocábulo novo, retemperado pela nascente, substituirá
o rigor rígido do conceito pela fluidez e fugacidade de uma respiração. Na sua
intrínseca transgressão a palavra conduzir-nos-á à nudez viva do silêncio, à
transparência do ilimitado”. Como muito bem apontas, uma das muitas e unas
chaves da poética de Ramos Rosa é a transparência, possibilitada pelo silêncio
e pelo vazio. Aqui Ramos Rosa vai beber muito nas filosofias do Oriente
concedendo, naturalmente, uma pulsação originária à respiração. Mas esta origem
nunca é temporal (seria, para utilizar o título do teu livro de ensaios, um
início transversal do tempo) e o silêncio nunca é um vazio sem irradiação: “O
silêncio neles era a substância viva de uma palavra que não desejariam dizer
para que não a perdessem”. O apelo que sentimos para um estado inicial, a
urgência da vida que havemos de ser depois de nos libertarmos, através do
silêncio da sombra e da incandescência, será a palavra nua. Só com esta
nasceremos de novo puros. O universo de Ramos Rosa é sempre de fusão. Aqui a
transparência e a obscuridade requerem-se, como o sim e o não, como o ser e o
não ser, e tudo o que é contrário, dentro da óptica do conceito, coabita feliz,
residindo a plenitude neste pulsar de diapasão. Ramos Rosa é um guardador da
palavra essencial, porque e a sua escrita é uma lenta e contínua interrogação
para que a sua palavra seja “o fruto vivo do silêncio e do vazio, transparente,
aberta e nua”. Ainda bem que tocaste no ponto que me é particularmente querido,
que é o da participação. No fundo é dela que tenho estado a falar. Ramos Rosa
chega a afirmar, neste mesmo texto, que os deuses – e todos eles coabitam – têm
a realidade das nossas sensações. E em toda a sua obra há um léxico recorrente,
como lâmpada, branco, redondo, folhagem, etc., em que o mesmo termo significa
sempre o uno e o diverso. Inclusive, a sucessividade em Ramos Rosa é o
movimento do simultâneo. Tal como não deixa perder a palavra intacta, nada
perde do universo inteiro. E não poderíamos estar diante do tropos a que
comumente se chama metáfora, porque estaríamos já novamente no domínio da
substituição e, por isso, da perda. A poética de Ramos Rosa é copulativa e não
alternativa: o vazio torrencial é o ónus da participação sem tréguas e só por
ela seremos salvos.
RP – Sim. Exatamente. Talvez por isso Eduardo Lourenço, em
seu ensaio excelente intitulado O Excesso do Real, ao analisar a poesia de
Ramos Rosa, tenha ressaltado esse aspecto de sua dialética interna, que
oscilaria entre uma Ausência e uma Presença, esta tentando assimilar aquela em
seu equilíbrio que não pressupõe nenhuma exclusão, porque não há nenhum
antagonismo. Essa conciliação dos opostos em uma unidade imanente também se dá
em um dos seus livros de prosa poética, Relâmpago de Nada. Como bem assinala a
estudiosa Paula Costa no Posfácio, o próprio título do livro já é um quiasma,
um paradoxo, uma antinomia. Nele estão implicados os dois princípios
aparentemente antitéticos da sua poesia, a plenitude proposta pela luz
fulminante (relâmpago) e o vazio que se lhe agrega como atributo: o nada. Esta
vacuidade, por paradoxal que pareça, é um corolário não uma refutação. Porque se
a expressão da palavra é sempre a “inauguração de um espaço de sentido que se
abre”, ela mesma, em seu movimento, também produz a sua contrafacção: uma zona
de sombra que expressa a palavra “não dita” e “exilada em seu silêncio”. Você
mencionou alguns pontos fulcrais da poética de Ramos Rosa. Entre eles a idéia
de silêncio. Esse silêncio ratifica tranqüilamente o sentido da origem, que a
sua poesia busca, na medida em que se propõe como espaço inaugural, não só das
palavras, mas da possibilidade mesma de dizer. O silêncio é visto como
instância projetiva da linguagem. Dele ela nasce e a ele ela retorna
transfigurada, porque ousou dizer e assim cair no estado de ser, na derelicção,
como quem perde o paraíso por espontânea vontade e, mais que isso, faz desse gesto
o objetivo maculado da afirmação da vida e de tudo o que ela acarreta, como
privação, limite, finitude e impossibilidade. Nesse sentido, Ramos Rosa pode
muito bem ser visto como alguém que desenvolve uma poética da impossibilidade,
fundamental e fundadora, para usar o famoso conceito de Maurice Blanchot,
ensaísta que ele tanto admira. Você não acha?
RAB - Em primeiro lugar acho que desenvolveste um dos pontos
ambíguos e cruciais, tanto da esfera do Ramos Rosa poeta como ensaísta. Tal
como ele, numa certa perspectiva, estou completamente de acordo, mas não posso
deixar de acrescentar a outra face da moeda. Em L’âge Secret de L’ignorance,
escreve Robert Bréchon: “Se a transparência ‘vertical’ é a forma apolínea da
ignorância reencontrada, a redescoberta da verdade do sopro (respiração?) é a
sua forma dionisíaca”. Mais do que uma relação dialéctica, trata-se de uma
relação dionisíaca com o mundo que, tal como em Nietzsche, não exclui Apolo,
nem o dispensa. E contudo, também relação que, apesar de tudo, não pode deixar
de se chamar “dialéctica”, e que sempre entendi como tu: como uma dialéctica
sem exclusão. De forma quase inversa da perda, vejo-a como a criação de
mot-valise, em que os termos aparentemente antitéticos entram em jogo de
sedução mútua, para entrarem na desmedida de uma cópula excêntrica. É que Ramos
Rosa é um poeta perspectivista, mas todas as perspectivas convergem para o acto
inaugural que é, também ele, ponto de chegada. Mesmo quando escreve “sim do sim
do não do não”, ou “a não verdade e a verdade”, eu sinto esse uníssono, essa
polifonia convergente sem perda de diversidade, essa conspiração,
concupiscência pura, num universo em que palavra e mundo coincidem. E a palavra
que assim o diz tem em si, como diria Álvaro de Campos, todos os sonhos do
mundo. Por isso, a impossibilidade é sempre jorro de possibilidade e a
possibilidade é já fecundadora do real. Trata-se acima de tudo de uma poética
da fecundação da palavra para chegar à palavra mais longínqua e, por isso, mais
próxima de nós e da nascente. Esta ideia de fecundação e jorro coloca-me de
imediato numa outra das características dominantes da poética de Ramos Rosa que
é a eroticidade. E também aqui não estamos perante o eros em sentido habitual,
ainda que também participe desse sentido. O eros habita tudo o que existe,
desde a pedra à mulher, numa modalidade simultaneamente amorosa e animal. Todo
o universo é volúpia e a poesia oferece-se generosamente a todos os sentidos.
Nascente Submersa é talvez o livro em que o erotismo mais se enuncia em
avalanche, da terra à mulher, ao animal e, de novo, à terra. Todo o universo se
esbanja em formas plenas, um magma torrencial é o fluxo da palavra no poema. É
certo que o amor/eros não existe sem o eterno feminino, como nos versos deste
livro que citei: “Uma água subtil flui entre os seus tornozelos./Quem poderá
dizer a lisa imobilidade do seu ventre/e o hímen da perfeição com suas árvores
violentas?/A vulva tanto pode ser uma cripta ou um vulcão”. Quanto a mim, Ramos
Rosa refaz em cada poema o acasalamento que origina o mundo como livro a vir
(para retomar Blanchot), como celebração do jacto da palavra a penetrar a terra
numa alegria animal e pura.
RP – A relação da poesia com a respiração pertence a uma
concepção órfica, à qual podemos tranqüilamente vinculá-lo. Isso está no famoso
diálogo Íon de Platão, no pitagorismo, nas artes poéticas de inspiração
platônica, e a idéia mesma da poesia como sopro, como pneuma, é repleta de
componentes iniciáticos, da tradição hermética e da gnose. Aliás, se pensarmos
nas Sibilas e nos ritos e cultos de mistérios da antiguidade, a história da
poesia quase se confunde com a história dos saberes revelados, prescritos e
previstos por uma série de técnicas de êxtase e de códigos de iniciação. A
dimensão corporal e sexual desses ritos e signos de pertencimento e de
desvelamento é evidente e incontestável. No caso da poesia de Ramos Rosa, uma
das primeiras teses defendidas sobre sua obra no Brasil, de autoria de Maria
Heloisa Martins Dias, chamada Signo do Desejo, elege justamente esse ponto
concernente ao amor, ao desejo e ao erotismo de maneira mais expandida como fio
condutor de sua análise. É claro que, em ambiente moderno, a poesia de Ramos
Rosa resgata essa tradição iniciática, mas a lê, não como regresso a um imaginário
de credulidade ou como manutenção de doutrinas obscurantistas, mas sim como
base de superação da aporia em que desembocou o criticismo kantiano. Tanto sua
poesia quanto a sua inserção nessa linha histórica supõem uma crítica ao
dualismo. Por isso, você está com toda a razão, ao minimizar o papel da
dialética na sua poética. Há assimilação do negativo e reversão do positivo,
que não é mais visto como algo dado e inequívoco. Nada mais distante da poesia
de Ramos Rosa do que o trabalho do negativo que encontramos em Hegel, este sim,
filósofo da exclusão sistêmica e da luz sistemática que varre tiranicamente
todas as zonas de sombra do mundo, sob o pretexto demagógico do progresso. Seu
intuito parece ter sido a criação de um império universal do em si puro, como
pensamento centralizado e ápice da racionalização abstrata. Daí ao
pan-germanismo é um passo, mas os intelectuais, politicamente corretos,
preferem incriminar Heidegger e dizer as maiores atrocidades sobre Nietzsche, o
filósofo que destruiu, sumariamente e a marteladas, todas as possibilidades de
totalitarismo. Se, como previa Hegel, todo evento já traz em seu bojo a sua
negação, concebida como razão necessária de seu advento como fenômeno e
primeiro motor da dialética, então Ramos Rosa, em sua poesia, ultrapassa esse
dilema, ao propor que ambos sejam assimilados pelo devir e pela temporalidade,
que subtraem essa dicotomia de superfície e desmontam suas engrenagens. Creio
que a força de sua poesia, nesse sentido, devenha de seu caráter original.
Original entendido aqui como convocação do leitor a auscultar a voz da origem.
Não no sentido frívolo de novidade, de efeito de linguagem que disputa olhos e
espaços em uma sociedade de mercado, de consumo e de livre concorrência,
operação esta que, diga-se de passagem, por mais que seus defensores não o
queiram, demonstra a ascendência ideológica burguesa da qual ela procede.
Trata-se de uma poesia mobilizada por Eros, poesia modeladora do mundo, e você
tem mais uma vez razão e sua colocação é extremamente aguda: é o sopro de Eros
que desmancha os limites das coisas e que agencia a união de diversos reinos e
espécies, ao abolir por completo o princípio lógico da não contradição. Eros
como genitor da poesia, mas como artesão de mundos, como manifestação do corpo,
mas também como voz original que se desprende da terra e une toda a cadeia de
entes, desde os infra-celulares, passando pelos vegetais, pelos minerais e
pelos animais, e indo desembocar nos astros e nas constelações. Essa é o
princípio eidético da poesia de Ramos Rosa, a univocidade do ser que está em
tudo e em tudo participa e se manifesta de maneira equânime e ubíqua. Penso em
Saint-John Perse, cuja poesia se propõe como a própria encarnação de Eros.
Penso em Parmênides, que não doutrinou sobre a diferença, e com isso preservou
o universo intacto em sua transparência. Para Ramos Rosa, a ferida do ser, da
qual nasce esta abstração chamada Ocidente, se chama dualismo. Mesmo ela, por
meio da poesia, pode ser curada. Ao menos ser transformada em uma ferida intacta,
como diz o título de um dos seus livros.
RAB – Acho que chegaste a um dos pontos chave da poética de
Ramos Rosa. Essa voz original que se desprende da terra e une toda a cadeia dos
entes é objecto de Siris, o último livro de Berkeley. Constitui-se como uma
deliciosa cosmologia banhada pela mesma luz da poética de Ramos Rosa. Na
continuação do que dizes, a Siris é exactamente a cadeia que pressupõe o
contínuo fluído como possibilidade do descontínuo e aquele infiltra-se em todos
os corpos, provocando nestes efeitos figurativos. A Siris une todos os seres,
cujo primeiro e último elemento são incorpóreos e todos os elos intermediários
são corpóreos, porque são capazes de gravidade, movimento e outras qualidades
dos corpos. Esta cadeia unificadora deve ser percorrida até à aurora do
espírito, o que significa recriar o espírito ampliando a celebração da vida
através de um “olhar” que dê conta da magnífica exuberância do mundo em toda a
sua variedade. Mas, segundo Berkeley, se ficarmos estritamente pelo que a ciência
nos oferece renunciaremos a habitar a profusão das coisas. É a força “equívoca”
da cadeia unificadora que lançará “um clarão nesta paisagem sombria” e este
clarão, este Relâmpago de Nada (lembrando o título de um dos livros de Ramos
Rosa) é exactamente a própria aurora do espírito. Estamos novamente no momento
inaugural, incorporando em si todo o tempo e todos os entes, mas com um novo
dado que é, também, central na poesia de Ramos Rosa: a ideia de que é
necessário ultrapassar o conhecimento para chegar à ignorância como pos
scriptum do ritual de iniciação à vida. De facto, O Livro da Ignorância, que
sagraria Ramos Rosa com o Prémio Fernando Pessoa, mais nos faz adentrar na
ideia de corte na cadeia das mediações, essa cadeia que não é unificadora, mas
redutora. Segundo Pascal Fleury, “esta passagem entre as palavras, entre
ignorância e ignorância, é o próprio caminho da descoberta”. Na verdade, é
des-coberta, é pôr a nu os elos como anéis de interioridade imediata, é chegar
ao proto-olhar que possui o dom de tocar e ser tocado, é desenvolver o instinto
da palavra guiada pelas palavras que já foram escritas e são agora inscritas na
pele do mundo, na sua simplicidade de ser apenas, sem atributos. Em L’Espace
Littéraire, afirma Blanchot que “a obra literária não é nem acabada nem
inacabada: ela é”. Mas como escrever “é dar-se ao interminável, o escritor que
aceita manter-lhe a essência perde o poder de dizer ‘eu’”. A ignorância é
correlata desde trabalho de despojamento do eu no trabalho infinito dos dias das
palavras. Assim, o olhar a que Robert Bréchon apelida de metonímico, já que vem
da pupila, encontra o mundo pré-significativo, o mundo do significante
flutuante de Lévi-Strauss. E não é por acaso que a pupila é o lugar do olhar,
já que a pupila é rigorosamente um centro vazio, um buraco negro. Este lugar
vazado e por isso permissor da entrada do mundo em nós, é também metonímia do
eu esvaziado, receptáculo amoroso das coisas prontas a serem tocadas pelas
palavras num êxtase sensitivo e de ascese que só é possível pela conquista da
ignorância. Esta postura é pouco corrente naquilo a que se costuma chamar
“Ocidente”. Mesmo os filósofos têm negligenciado, sistematicamente, o papel do
imediatismo. Mas, por exemplo, o filósofo oriental Nargajuna mostra que cada um
dos opostos de uma dicotomia é vazio, pois que a sua existência só se pode
entender na relatividade de um a outro. O poeta encarnando a acção – o que
acontece num elevado grau de crescimento – anula a polaridade e age como se não
agisse, escreve como se não escrevesse. Francisco Varela observa que uma tal
acção “graças à extensão ou aplicação apropriadas, tornou-se comportamento
encarnado, no seguimento de uma longa aprendizagem”. É neste sentido que
podemos falar em ignorância: como fruto e não como semente, como prolongamento
de uma cadeia que desemboca nos sentires, porque estes estão já tão aprimorados
que são o guia imediato para a acção. Fluindo pelos elos da Siris, Ramos Rosa
percorre o caminho da unificação até à aurora do espírito incorporado, podendo
dizer como Rilke que está no seu “trabalho como o caroço no fruto”.
RP – Creio que esta seja a dimensão da aderência, onde não há
mais a cisão representativa. Neste estado pré-categórico, dir-se-ia resultante
de uma epoqué fenomenológica, região do Aberto descortinada pelo silêncio e
mobilizada por Eros, enfim “o corpo é integrado ao cosmo”, para usar a
expressão de António Carlos Cortez. Toda a individuação se esvai ante a força
da torrente do devir para que “o poema seja a única entidade real e inteiramente
viva”. Este processo de despersonalização para que haja apreensão discreta do
fluxo vital está na raiz da poética de Ramos Rosa. E esse percurso unitivo que
você menciona tem uma radicação na poesia portuguesa. Essa radicação, em boa
parte, se guia por uma reação a Fernando Pessoa. A valorização monumental de
Pessoa, em si mesma nada injusta, produziu alguns fenômenos negativos, como o
eclipse de alguns bons poetas que lhe eram contemporâneos, caso clássico do
grande Mário de Sá-Carneiro. Outro efeito deste fenômeno é a reação das
gerações subseqüentes à despersonalização, à pantomima de máscaras que o grande
poeta português encenou em sua obra. Tanto que nos dois maiores poetas
portugueses atuais, Herberto Helder e António Ramos Rosa, por mais distintas
que sejam suas obras, vemos em ambos uma preocupação de unidade conceitual e de
figuração. E aqui estou de acordo com a pesquisadora Maria Irene Ramalho, ao
dizer que Ramos Rosa dá uma guinada ao processo de “estilhaçamento da
consciência” inaugurado por Pessoa, transformando esta relação em um campo de
embate. Como assinalou Ana Paula Coutinho Mendes, não se trata de uma nova
concepção de heterônimos. Porém, ao contrário do que se possa imaginar, essa
unidade não existe à revelia e a despeito da diversidade. O que ocorre é que
não nos movemos mais no terreno da heteronímia, mas sim na heterografia, para
usar um termo de Michel Foucault, autor que Ramos Rosa chegou a traduzir. Para
falar com Deleuze, não mais o inconsciente pensado como teatro, mas sim como
usina: intensidades desfiadas e esvaziamento de todo o simbolismo prévio à
imanência do próprio texto como agenciador de sentido e produtor de imagens.
Assim, é importante lembrar o texto admirável de abertura que Ramos Rosa apôs a
Imobilidade Fulminante, com certeza um de seus melhores livros. Nele, partindo
da idéia de poesia como alteridade e como segunda voz, colhida em Octavio Paz,
o poeta diz-nos que não há nada mais distante do mito de Narciso do que a
poesia. A não ser que pensemos em um Narciso morto, submerso nas águas, duplo
de si mesmo, aderindo à região indiferenciada que origina todas as
formalizações, e em sua morte como princípio necessário à diluição da
semelhança em diferença, motor da transformação do eu em flor e primeiro passo para
a eclosão da poesia. Seria aí, nessa morte da consciência, apagada, à sombra da
qual o devir poético se completa em seu curso de beleza e impessoalidade, que o
poeta escavaria sua voz. Não uma voz exclusiva, que remeta a algo de
irredutível que nele haja, mas sim uma voz oclusiva, que nascesse do
entroncamento de rios e de um acorde composto de todas as vozes que se tramam
sob uma só fala. Essa condição em que Ramos Rosa se coloca, da mais altiva e
plena humildade, ao reconhecer a impossibilidade mesma de ser poeta sem outros
poetas, de escrever um só poema sem que este refaça em seu corpo o percurso de
toda uma tradição de poemas, contraria a própria idéia, essencialista e
egótica, de originalidade ex nihilo. Assim, Ramos Rosa nem sequer pretende
estabelecer uma “fronteira ilusória” entre o que seja “exclusivamente” seu e o
que seja dos “poetas que confluem” para a sua produção poética. Crítica radical
de todo o psicologismo e a toda metafísica substancialista, essa maneira
provinciana que a crítica literária encontrou de se esquivar de sua própria
incompetência, ao deixar o criador em estado de impossibilidade, de silêncio,
de derelicção, à sombra de sua obra, quase como criatura de sua própria
criação, como chega a nos dizer em um poema, ou, como queria, mais uma vez,
Maurice Blanchot, como se o poema fosse anterior ao poeta, Ramos Rosa confere à
poesia uma dignidade e altitude que poucas vezes na história lhe foram
concedidas. Ponto no tecido infinito e impessoal da literatura, canalização de
um sopro que lhe precede e que não tem fim, essa é a pobreza, essa é a nudez,
esse é o espelho de terra onde a face do poeta se reflete precária e assume sua
limitação como condição transcendental necessária para que a poesia exista e o
ultrapasse. Esse é também o testemunho do gênio. Não a expressão dos seus
sentimentos, mas a fuga deles, como queria Eliot, para que algo mais urgente
possa ser dito, em detrimento de tudo o que possamos, seja por meio de
artifícios secundários, seja por meio da formalização psicológica a posteriori
de uma intensidade, identificar como sendo a voz de quem fala. Para retomar a
velha pergunta platônica, quem canta no poeta quando ele canta? António Ramos
Rosa diz-nos que muitos. E a segurança que ele tem de sua própria criação lhe
retira magistralmente o ônus da vaidade, que quer q todo custo camuflar os
bastidores e encenar a sós a sua mentira auto-suficiente.
RAB - Essa questão da heterografia (Foucault) e heteronímia
que acabas de recolocar é muito interessante. A auto-intertextualidade (Gérard
Genette) de que fala Ana Paula Coutinho Mendes em Mediação Crítica e Criação
Poética em António Ramos Rosa relaciona-se umbilicalmente com a ideia que este
exprime na entrevista já citada por Paula Cristina Costa, em que afirma que
toda a poesia é heteronímia, mas aqui heteronímia é vista em relação ao sujeito
poético. Ramos Rosa diz textualmente: “Aliás, a poesia é sempre, como qualquer
criação literária, uma heteronímia, não tanto como Pessoa o afirma de uma
maneira incontestável, i.e, porque o poeta é um fingidor... mas porque o poeta
nunca se exprime e nunca traduz univocamente o que é, porque nunca sabe bem o
que é. A escrita é sempre por isso heteronímica porque o sujeito poético nunca
se traduz univocamente num poema”. E aqui te encontro quando afirmas que a
poética de Ramos Rosa é também uma poética da impossibilidade, fundamental e
fundadora. Uma indecisão heteronímica não será o correlato de uma escrita
heterográfica, sem que esteja a colocar relações de anterioridade? É certo que
a poesia de Ramos Rosa é tecida de vozes e convoca também outras vozes. No
primeiro caso, cabe pensar o tipo de relação que este mantém com os poetas que
o “influenciaram”. Acho que cabe aqui uma comparação com o momento em que Ramos
Rosa, ao ler Lorca em tradução francesa exclama: “E então pensei: mas o Lorca
mesmo através de uma tradução francesa é um grande génio espanhol”. E quase logo,
na mesma entrevista, por Paula Cristina Costa, adianta Ramos Rosa acerca do
poema que escreveu sob o efeito da leitura de Lorca: “tem o génio de Lorca e a
sua influência, mas também é meu”. Ora, nós sabemos que Ramos Rosa não tem o
menor problema em falar das suas influências, que assume e defende uma posição
de “apropriação” relativamente aos poetas e poemas que o impressionaram. Mas,
justamente, em que consiste, na sua essência, esta apropriação? Mesmo no caso
mais extremo em que toma de assalto alguns versos de um poema de outro, ou
quando bebe a sua tónica, é como se transfigurasse o pão em corpo, já que o
novo poema passa a pertencer, inequivocamente, ao universo de Ramos Rosa, pois
este poeta é pura receptividade transformadora e activa. E, simultaneamente,
Ramos Rosa é um poeta da ipseidade, pelo que dá um passo a caminho do outro que
o coloca no âmbito da alteridade pura. A relação de intertextualidade deverá
incluir este movimento biunívoco em que a escrita se alimenta do outro para se
transformar em si, ao mesmo tempo que o poeta se coloca no lugar do tu,
radicalmente dialógico. Na revista Foro das Letras de Dezembro de 2004, Ramos
Rosa tem um poema inédito em que dialoga com Clarice Lispector. E a propósito
deste, e de outros poemas, escreve Paula Cristina Costa que há sempre um tu a
quem se dirigem os poemas de Ramos Rosa, um “tu (des)conhecido”. Esta aparente
contradição reflecte o facto de que, mesmo quando o tu está explícito, ele
expande-se rapidamente a quem possa encarnar o lugar do tu, e logo o poema se
desprega da relação dialógica no sentido usual, para se ir ampliando em diálogo
aberto ou, pelo contrário, para confrontar um eu poemático com um tu usurpador.
Este “tu” pode ser a pátria agrilhoada, como em O Grito Claro os poemas “Poema dum
Funcionário Cansado” e “Boi da Paciência”, pode ser a pátria libertada, depois
do 25 de Abril, em Ciclo do Cavalo de 1975. É notório que Ramos Rosa ponha em
cena duas situações de tanta relevância como o boi (lembremos Carlos Drummond
de Andrade, no mesmo sentido) e o cavalo. Em António Ramos Rosa, um Poeta in
Fabula - tese de doutoramento de Paula Cristina Costa - apurando qual o lugar e
o sentido da fábula na poesia deste autor, a autora encontra também a dimensão
dialógica neste teatro de vozes outras, mas convocando hierofanias, ou lugares
de irrupção do sagrado. Este lado do maravilhoso, do mito fundador, mais uma
vez nos conduz à génese, ao cântico do mundo, para a génese de um eterno
recomeço. Acaba de me ocorrer um dos livros de Michel Serres, pois Ramos Rosa é
um autêntico Hermes: dialoga com os outros, com o mundo e consigo próprio.
Neste diálogo com o mundo, é como se a escrita tornasse visível o verbo e o
comunicasse a nós, no sentido de Michel Serres, para o qual comunicar é
entendido no sentido físico dos fenómenos de propagação. E, mais uma vez
reencontramos os antigos pois, como nota Serres, este conceito leva a
considerar o que outrora se chamava “fluídos”. O poeta habita o espaço arcaico
e infinitamente aberto do seu corpo. Este corpo é o lugar de passagem entre um
eu sempre diferido, sempre a perder-se, para se reinventar no tu que o escreve,
ou que o lê (“é assim que Clarice nos lê”). A obra de Ramos Rosa é a Anima do
mundo numa espiral que ascende e nos impregna deste movimento, até onde quisermos
fazer parte desta aventura de ser, em que a palavra, mais do que “casa do ser”,
como em Heidegger, é o ser que cria o espaço de liberdade: o único espaço
habitável.
RP – Sim. E só uma poesia de alta densidade de linguagem pode cumprir todas estas etapas do sentido. Sinalizar o silêncio e nascer dele, indicar a criação como sombra mas não se refugiar nela. Habitar espaços abertos e promover a circulação de todos os elementos sob o devir corporal. Propor a liberdade mais radical sob a violação de normas, e fazê-lo com uma ductilidade quase infantil. Ser fluída e interrogar a matéria até sua exaustão, colocando-a em constante aporia. Por todos esses motivos, como lembra Gastão Cruz, é desconcertante saber que os meios de comunicação e a crítica continuem fazendo a apologia de uma hipotética poesia do cotidiano, que sabemos, na maioria das vezes, refém de suas próprias limitações conceituais. Creio que a poesia de António Ramos Rosa possa alterar significativamente o cenário poético brasileiro, ainda muito dominado por questionamentos equívocos. Seja ao ver a linguagem como objeto autônomo, e criar, assim, o império do signo desenraizado da experiência e até mesmo do conceito, da forma mental, da cosa mentale que o engendra, seja ao apelar para a informalidade, que ignora premissas básicas da arte poética e dos seus artifícios, à custa da adesão aos argumentos sociológicos os mais demagógicos e impertinentes, em linhas gerais a matriz do pensamento poético brasileiro ainda deve muito ao positivismo cândido que o fundou. Poeta da liberdade que paira sobre si mesma, do claro enigma da língua absolvida do mistério mas que traz em si candente a sua inscrição residual, talvez a poesia de Ramos Rosa possa dar ensejo a novos caminhos. Mais do que navegar e criar, é preciso viver estas dimensões como tangíveis. Só assim a travessia é possível. E o universo deixa de ser uma ilusão impossível de ser corrigida e passa a ser a matéria mesma de uma poesia que nos abre para tudo o que pode ser criado no momento mesmo em que nos cria. Um reino da reversibilidade, talvez. Onde o mundo possível só o é na medida em que adere ao real, se entranha nele de tal modo que acaba se transformando na interioridade pura de seu movimento.